terça-feira, junho 06, 2006

doce luz entre os pinheiros
para combater o dia do DEMO


Eles se conheceram durante a faculdade. Ele estava no segundo ano de economia e cantava na banda mais legal do campus. Ela era caloura no curso de física. Todos falavam para ela sobre essa banda legal , a banda mais legal, que ela precisava assistir. E os amigos de Rubem também logo passaram a comentar sobre essa nova garota, bonita e gênio, eles diziam, tão bonita e tão inteligente.

A primeira vez que eles se encontraram foi durante um show. Ele estava cantando, tinha uma voz forte e olhos grandes, sorria e brincava com a platéia de tal forma que ela pensou ter entrado num universo paralelo onde todos alcançavam uma leve felicidade efêmera. Ele parecia tão feliz e amigável que ela se lembrou de seu cão São Bernardo. Era um cão grande e espaçoso mas não havia cão mais simpático nesse mundo. Ele era como um ímã, onde quer que o levasse atraía as pessoas. Georgia sempre achou estranho o encanto que seu cachorro exercia sobre as crianças pois ele era grande e podia arrancar a cabeça de um bebê com facilidade.

Quando Rubem desceu do palco e foi apresentado a ela, pensou que não estava preparado. Provavelmente nada poderia prepará-lo para Georgia. Nem que lhe avisassem de seus olhos bonitos e suas sardas adoráveis, nem que lhe previnissem sobre seu cabelo de cachos imperfeitos, nada. Ele não estaria preparado pois havia algo nela que era impronunciável. Um magnetismo sem nome, uma força invisível que o fazia gravitar calado. Eles se cumprimentaram com um beijinho no rosto e um "oi" relâmpago. Ele imediatamente se voltou aos amigos e não conversou mais com ela. Ela ficou levemente decepcionada pois queria conhecer melhor o cãozinho. Discretamente ela o observou. Rubem tinha uma risada cheia que fazia duas covinhas grandes se formarem nas bochechas e mãos de dedos gordinhos. Mas não percebeu que ele fechava o punho esquerdo com força, detalhe que, observado mais atentamente, revelaria o estado catártico que sua presença o faria alcançar por um bom tempo. Ele se sentia estranho mas disfarçava. Não olhava pra ela e enquanto falava de certas coisas pensava em outras... e ainda por cima ela se chama Georgia, ele pensou, lembrando de Ray Charles e da música que ocuparia sua cabeça a noite toda:
Georgia, Georgia,
The whole day through
Just an old sweet song
Keeps Georgia on my mind
Keeps Georgia on my mind

Os meses foram passando , eles estudavam, conheciam outras coisas e outras músicas e outros cachorros. Ele tocava toda semana, ela sempre estava lá, fingindo um interesse demasiado pela cerveja local. Algumas conversas desencontradas aconteceram, sempre precedidas por uma louca gagueira mental: "meu pai é dentista" , "eu tive um cão são bernardo", "eu cortei meu dedo num papel"... toda noite esperavam encontrar alguma esperança no submundo do subtexto, mas nada parecia lhes acenar e íam pra casa um pouco melancólicos pensando que não tinham nada em comum.

Georgia on my mind
A song of you
Comes as sweet and clear
As moonlight through the pines

Um ano se passou e o tecladista da banda de Rubem se formou e voltou para sua cidade do interior. Todos sabiam que Georgia tocava piano tão bem quanto sabia teoria da relatividade e Rubem nem precisou convidá-la pois outros já o fizeram. Georgia aceitou e no primeiro ensaio Rubem pensou que vomitaria. Mas não vomitou pois quando chegou ouviu de fora da sala o som do piano em Georgia on my mind. Ele pensou que finalmente seus devaneios haviam se tornado assombrações auditivas mas ao abrir a porta encontrou Georgia ao piano, com seus dedos curtinhos e brancos e seu sussurro de vento cantarolando. Ele olhava suas mãos sem entender como dedinhos tão pequenos não perdiam o compasso. Eles íam e vinham rápidos , parecia que não chegariam no tempo certo ou não bateriam com a força certa na tecla, mas sempre chegavam e acentuavam as notas como deveriam ser. Tudo tão certo nela, tão certo. Ela olhou pra ele como se pedisse para cantar. Isso eu posso fazer, pensou, e fez.

Other arms reach out to me
Other eyes smile tenderly
Still in peaceful dreams I see
The road leads back to you

I said Georgia,
Ooh Georgia,
no peace I find
Just an old sweet song
Keeps Georgia on my mind

Rubem nunca cantou tão bem. Sua voz encheu a sala e Georgia já sabia, mas pensou de novo, que seu latido era alto mas a carinha era de são bernardo. Ela sentiu uma leve felicidade efêmera e pensou que se soubesse como chorar de alegria, talvez choraria um dia. Rubem nunca se sentiu tão sincero. Quando a música acabou eles sabiam o segredo recíproco que acabavam de pronunciar e absurdamente permaneceram tranquilos, pois sabiam que era só questão de tempo.
Ele nunca pensou que se apaixonaria por uma estudante de física. Ela já deveria saber que em músicos e médicos há sempre algo especial.

1 Comentários:

Às 12:45 AM , Blogger Tel disse...

Ai q bonito!

 

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